
Lilian, não aguentei, precisei escrever
Não quero que lembre de mim nesses dias como a amiga fugidia. Sei que estive muito com meus papeis e livros, minhas ideias soltas e sonolentas e talvez um pouco tempo demais só. Mas nós duas sabemos que esta sou eu com exatidão.
Ponho então diante de ti, por intermédio dessa carta, o desejo primordial da minha existência: apalpa quem eu sou. Põe as mãos sem pudor da substância que me mantém viva, sente essas teias que ligam a vida aos meus trejeitos.
Essa massa disforme é pesada, é densa, mas por vezes flutua mais fácil do que flutuam as sacolas plásticas. Essa massa expande, contrai, todo dia se vincula à propriedades diferentes – algumas mais do que as outras, é verdade, como no caso da solidão – mas toda essa massa medonha ainda anseia por ser entendida e, posteriormente, amada.
De nada me serve o amor sem compreensão. Quem não vê e não assimila minha substância só ama a aparência, a primeira das ideias falsas. Quando diz que a mim ama, espero que se ponha a tocar esse objeto estranho que sou eu, mesmo que com assombro, e que, por si só, decida que dele gosta. Só acredito nesse tipo de amor, o resto é conversa fiada, confete e cegueira mundana.
Ah! essa carta é tão especial que não pude evitar às lágrimas. Mas na verdade eu acho isso tudo muito engraçado. Lembro-me então das inúmeras histórias – estórias? – que te contei com tom jocoso sobre todos aqueles inocentes que com dois dias se atiravam em meus braços – e outras partes do corpo – sentenciando liminarmente: te amo, Pietá. Te amo com todos os meus órgãos, com todo o meu ser. Pobre diabos.
Aquelas criaturas nunca me amaram e nem poderiam. Nunca deixei de pensar que todos correriam ainda nas demonstrações iniciais de mim. Aqueles convictos de seu amor por mim nada mais são do que enganados. Segurei tantas vezes o tranco de apresentar-lhes quem sou que decidiram me amar pelas frestas. Os coitados nunca passaram nem da porta da frente. Não sabem de nada, são ordinários e isso os confere uma espécie de pureza.
Que ironia que apenas você e eu saibamos que a maioria disposta a me manusear, fugiu. Rimos tanto disso, caçoamos daqueles amores ocos, que, nesse ponto, meu riso se mistura ao pranto e ao desespero.
Lilian, minha irmã, não permita nem por um segundo que, mesmo diante da nossa amizade, você não me veja como sou. Os homens passam como passam os cães farejadores. Nós permanecemos porque somos aço.
Da sua sempre sua,
Pietá.
(As Cartas que Vocês Nunca Receberão – Bruna Alencar)